De Marcos Artur Gonçalves
Faz três anos que aconteceu. Maria Eduarda não exibe nenhum sinal de sofrimento cotidiano, mas os parentes e amigos têm o assunto como proibido, e não o tratam diante dela de forma alguma. A polícia há muito não a procura, e a família de João Gustavo, bastante presente a princípio, afastou-se também, pode-se dizer que com um sentimento de alívio.
João Gustavo desapareceu. Faltavam cerca de dois meses para o casamento. Nunca o encontraram, nem sinal de seu corpo, ou de seu automóvel. Nada. Meses de procura incessante das famílias, pressão sobre a polícia daqui e de outros estados, apelos em jornais, até mesmo programas de televisão. Tudo inútil. João e Maria conheciam-se desde os tempos de segundo grau em Boa Viagem. Freqüentavam juntos a praia. Começaram o namoro quase inevitavelmente, nos encontros com a turma, aos fins de semana. Terminaram a faculdade simultaneamente, ele, cientista de computação, ela, advogada. A jovem fez um concurso público assim que se formou. O rapaz trabalhava numa empresa de informática em Recife, e havia uns meses que também estudava à noite para prestar concurso. A vida parecia sorrir para eles, definida, previsível, segura. Embora jovens, acumulavam já oito anos juntos, entre namoro e noivado. Juntos compraram o apartamento de dois quartos no Espinheiro, que ela continuou pagando e estava agora alugado. Perto que estavam do grande dia, tudo parecia acertado e arranjado. Até a música com que ela entraria na igreja, sugestão da mãe dele: “Eu Sei que Vou te Amar”, de Tom e Vinícius. O futuro lar, mobiliado. Os presentes, em grande parte recebidos. Tudo foi desfeito, tudo foi devolvido: Máquina de lavar, mobília, cama de casal, freezer, pacote de viagem para Miami. Ficou a dor insensata, o medo, a revolta surda e a vergonha, principalmente a vergonha. Nunca houve pedido de resgate, nenhuma comunicação, nada. Apenas boatos estranhos e desencontrados que chegavam de tempos em tempos. Falação maldosa de gente despeitada. Futricas de comadres.
Eduarda evitava ao máximo pensar no passado, mas como não pensar? Esse passado era seu dia-a-dia, sua rotina. Principalmente à noite, após apagar as luzes, ela tardava em dormir, cismando. Reconstituía o último encontro, passo por passo, buscando um indício, um sinal, um prenúncio, uma explicação. Qualquer momento ou silêncio ou gesto que ela até então tivesse ignorado e que pudesse trazer algum sentido à grande tragédia que mudou e determinou sua vida.
Os noivos jantavam em casa dos pais dela, todas as quartas-feiras. Como sempre fazia, na última noite ele a apanhou à porta do edifício onde ela trabalhava. Chegava, parava o carro, ligava do celular e deixava-o tocar duas vezes, ela descia pelo elevador. O processo não tomava mais que cinco minutos, mas a avenida era movimentada e era impossível não estorvar o trânsito e ouvir muitas buzinadas e alguns xingamentos. A noiva chegava, rápida, abria a porta e pulava para o assento. Perdiam ainda alguns minutos, às vezes mais que o tempo do processo anterior, para entrar novamente no fluxo do tráfego. Eduarda tinha um pavor desmesurado da violência da cidade. Naquela derradeira vez, recordava, puxou o trinco e encontrou-o travado. Gustavo era um tanto avoado, distraído, lento. Era comum aquele esquecimento. Ela ralhou com ele, como fazia sempre. “Você sabe que eu morro de medo, deixe a porta destravada pra que eu possa entrar rápido. Essa avenida é cheia de trombadinhas.” Ele desculpou-se. Ela esqueceu o assunto. Principiou a falar sobre as tramas da repartição. Foram assim durante o trajeto. Ela contando, ele assentindo com a cabeça enquanto dirigia.
No apartamento amplo onde os pais dela moravam com as três filhas, o casal entrou em silêncio. O chefe da casa assistia ao jornal das oito, instalado na sua poltrona habitual. A mãe cuidava do jantar. As irmãs, em seus quartos, preparavam-se para sair. Maria Eduarda beijou o pai na testa, pediu-lhe a bênção, que ele deu com alegria, mas evitando desviar os olhos da previsão de tempo na grande São Paulo, mostrada naquele instante por um jovem de terno cinza. João cumprimentou-o, sentando no sofá do outro lado da sala. Saudou em voz alta a sogra, que gritou alguma coisa ininteligível em resposta.
À mesa, as irmãs conversavam sobre um novo bar aberto uns quinze dias antes. A mãe trouxe os últimos pratos, com ajuda da empregada, uma garota de uns dezessete anos trazida do interior havia pouco. Estando tudo pronto, a boa senhora dispensou a garota e sentou-se na extremidade à esquerda de João. No extremo oposto estava o marido. Começaram a refeição. A noiva, animada com a descrição do novo estabelecimento, determinou que o casal iria conhecê-lo no final de semana seguinte. O noivo emitiu um desnecessário grunhido de concordância. A mãe, como de costume, iniciou uma série de considerações sobre o perigo de saírem à noite. Pôs-se a relatar o assalto sofrido pelo filho de uma amiga. O homem mais velho pontuava as palavras dela, a intervalos, com um “isso mesmo” ou “é verdade.” As filhas já haviam mudado de assunto e iniciado uma conversa paralela. Durante alguns minutos João Gustavo ficou observando a mulher, meio constrangido. As palavras maternas converteram-se num monólogo acompanhado penosamente pelos dois homens. Então, repentinamente a mãe faz uma pausa, toma do meio uma frase que a filha caçula acabara de dizer, e integra-se na conversa das meninas, que prossegue. O pai, aliviado pelo frescor do esquecimento cheio de atenções das mulheres, saboreia cada gota dos dois copos que são sua ração diária de vinho, permitido apenas à hora do jantar. O noivo distrai-se, observando-o. O sogro era um engenheiro civil aposentado da Petrobrás. Sofrera um enfarte anos antes. Até então fora uma criatura laboriosa, tensa, apressada, deveras sisuda, trabalhando arduamente pelo conforto e segurança da família. A doença e as duas pontes de safena que se seguiram impuseram-lhe a aposentadoria prematura. Caminhava diariamente, lia seus jornais e revistas semanais, e assistia à televisão. João Gustavo sentia pena dele. Ao mesmo tempo sentia inveja. Pensava em seu apartamento amplo, seu condomínio em Gravatá, seu carro luxuoso, sua mulher dedicada, suas filhas lindas, até mesmo seu insuportável poodle que adorava latir e morder as pernas de suas calças, e considerava quanto seria difícil construir tudo aquilo. Uma vida toda empregada em tal missão, e seus netos, chegando aos vinte anos, mal se lembrariam dele. Era uma grande pressão. Algo nisso tudo o incomodava, e ele não sabia e não conseguia entender o que era. Ao fim do jantar, assistiram a mais tevê, na sala de estar. Agora Maria Eduarda falava de seus planos para prestar novo concurso. Sonhava ser juíza. Esse assunto incomodava o jovem. Preparava-se para ser funcionário público, mas sem convicção. Recebera um convite para fazer mestrado, e sentia-se dividido. Ainda não contara à futura esposa, receando sua reação. De fato, vários amigos seus estavam concluindo ou haviam concluído uma pós-graduação, e ele não via que efeitos positivos isso tivesse tido na vida de nenhum deles. Em geral recebiam um pequeno aumento de salário e depois prosseguiam, fazendo as mesmas coisas que faziam antes. Por outro lado, era mais um atrativo que possuíam para o mercado, e pensando nisso temia por seu próprio futuro. Sentiu-se cansado de sentir medo. Medo de não ter emprego, medo de ficar só, medo de envelhecer, medo de fracassar. Mas o pior daquelas conversas no final da noite era que sempre chegava um momento em que noiva, sogro e sogra se uniam para instá-lo, “estimulá-lo” a abraçar o serviço público. Encarava aquilo como verdadeira coação e ficava compungido, intimidado pela má imagem que, pressentia, as pessoas naquela casa tinham dele. Pronto, começou! Deixou os argumentos rotineiros serem desfiados, concordando com todos, e assim que pôde ergueu-se, fingindo um gesto casual. Mas a noiva já conhecia esses sinais. Ergueu-se também. João olhou o relógio de pulso e disse “Bem, é tarde. Já vou indo.” Despediu-se dos sogros e deixou um beijo para as cunhadas, que haviam saído. A noiva o acompanhou. À porta, beijaram-se, como sempre faziam, e ela esperou que o elevador chegasse. A última imagem que tinha do noivo era essa: Entrando na cabine de aço, com o semblante indefinível, e mandando-lhe um beijo através do ar, com as pontas dos dedos.
Maria Eduarda não lembrava de todos esses detalhes, naturalmente. Por mais que tentasse, por mais que cavoucasse, a lembrança dessa última noite não lhe ajudava a adivinhar o destino do noivo, o que lhe sucedera naquela quarta-feira, depois que a porta automática fechou-se atrás dele.
Uma amiga de Maria Eduarda contou-lhe uma estória que ela interpretou como mais uma infundada e maldosa mentira. O fato é que não conseguia admitir nem para si mesma que preferia pensar no noivo morto a aceitar aquela versão fantasiosa. Segundo a amiga, João Gustavo teria sido visto por uma outra pessoa, um conhecido do casal, na noite de seu desaparecimento. O homem seguia para Natal, e ainda que não o visse com freqüência e se conhecessem apenas formalmente, estava seguro de ter sido ultrapassado por João Gustavo, logo após João Pessoa. Contou que embora a estrada estivesse bem deserta e dirigisse rápido, quase a cento e sessenta quilômetros por hora, o carro de João o ultrapassou e rapidamente deixou-o para trás. Disse que poderia jurar que o noivo nem notara a ultrapassagem. A lua estava cheia e o céu claro, e era o céu que João olhava, com o rosto ligeiramente virado para fora da janela. Tinha um sorriso, sereno sorriso nos lábios, e parecia, efetivamente, feliz. O sujeito afirmava ter certeza, porque tentara acompanhá-lo para fazer-lhe um aceno, trocar um cumprimento. Tocou sua buzina para chamá-lo, mas não logrou atrair sua atenção.
Eventualmente, Maria Eduarda voltou a namorar, casou-se, teve filhos, tornou-se juíza, teve netos. Muitos anos depois, já idosa, ela ainda tinha sonhos, sonhos em que via o ex-noivo, João Gustavo, voando a toda velocidade pela BR-101, rumo Norte do Brasil, rumo do desconhecido, rumo de seu despertar, rumo de sua fuga. Então ela acordava, erguendo-se em silêncio, e ia até a janela de sua cobertura. Quando era noite de lua cheia, quedava-se quietamente debruçada no parapeito, e olhando as estrelas, via a imagem daquele sorriso.